terça-feira, 19 de agosto de 2008

AQUECIMENTO

Agora me morde a boca a safada. Me morde com força. Sangro. Deixo. Gosto assim. Me lambe o sangue do beiço com apetite de bicho que desimberna. Respondo com a mão direita calcinha a dentro. Encontro outros lábios famintos. Engolem salivando meus dedos. 180 graus. Viramos na cama velha que range escandalosamente (não a trocamos justamente por isto). Somamos um número: 69. Agora sou boca, língua e dedos: me lambuzo e te bebo enfiado em meio as tuas pernas. Agora você é boca, língua e dedos: me lambe e me engole enfiada em meio as minhas pernas. E Assim começamos....

sábado, 16 de agosto de 2008

CELEBRAÇÃO

Invento liturgias imolando a mim mesmo no sacrilégio do meio das tuas coxas.

DESEMBARQUE I

Extraio do tempo a delgada fibra do instante. Fios de luz que prendo com pontos de agulha a minha própria pele.

DESEMBARQUE II

Rasgo os dias que visto enquanto espero pelado no sagão outros tantos que,
a todo instante,
chegam para me cobrir...

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

EPIFANIA

Curvado. Mãos suadas. Distribui as hostias: "corpo de Cristo". Voz anasalada. Dicção de padre. Nunca entendi por que celebram as missas assim. Talvez exista uma epístola sobre o tema. Uma bula papal. Seria Pedro um apóstolo fanho? Questões fonológicas transformadas em procedimentos litúrgicos. Aqui, porém, o verbo se faz anasalado graças a um cheiro. O padre respira pela boca. Evita o odor que desde o começo da missa o perturba, entra pelo nariz e desce até seus testículos. Tenta disfarçar dizendo aos fiéis sentir fortes dores na coluna e, todo torto, entrega as hóstias enquanto por baixo da batina seu pau vibra vigoroso, duro como pedra, quase lhe rasgando as vestes.

Olha a fila da comunhão. Logo atrás de Dona Apolónia, a mais carola das velhas carolas frequentadoras daquela paróquia, o cheiro corporificado. Blusa vermelha, saia preta, cabelos escuros cacheados presos por um discreto rabo de cavalo, pele morena sem maquiagem, sem perfume, ou seja: o cheiro por natureza inseparavelmente ligado aquele corpo.
Quando Dona Apolonia recebeu a comunhão as mãos do padre suavam tanto que a velha pôde sentir a hóstia salgar-lhe a boca.
E agora diante de si o cheiro. A piroca estalando enérgica. O corpo se contorcendo, mãos molhadas e tremulas. Ergue a rodela de pão ázimo: "corpo de Cristo." - "Amém" responde o cheiro abrindo a boca e oferecendo a língua para a consagração. Os dedos do padre encostam neste órgão carnudo, alongado, móvel que leve e discretamente os lambe. Epifania. A porra jorrando. Pernas bambas. O homem cai de joelhos. O esperma mancha a batina. Gozo intenso, o coração não aguenta e infarta. Os fiéis assustados fogem correndo da igreja...
O cheiro fica. Observa o corpo caído ao lado do altar mor. Ajoelha, passa a mão esquerda sobre a porra ainda quente que mancha a batina e com a língua sente a hóstia se derreter devagar agarrada ao céu da boca.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

BACO

Sobre as Termópilas Baco arremessa sua taça. Diverte-se ao vê-la batendo nas rochas. Aplaude e grita quando o mar a engole. Baco parou de beber: descobriu que gostoso mesmo é lamber o corpo das ninfas banhadas no vinho.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

CONTOS DA CORTE

Atabaques mudos. Todos atônitos observam a mulher calmamente bebendo no meio do salão. Vestido vermelho, taça de champanhe na mão esquerda, mão direita na cintura. A mãe de santo recomeça a entoar o ponto mas é novamente interrompida:
- Pode parar! Se você quer ir embora, pode ir. Eu fico, e me arranje um cigarro que quero fumar!
- Dona Maria Padilha. Diz a mãe de santo gentilmente, mas deixando transparecer sua preocupação com aquela situação inusitada. - A senhorita precisa ir embora, o dia já amanheceu e Danielle precisa voltar para casa...
- Eu sei. Aliás é por ela justamente que fico. Olha isto aqui (a entidade aponta para o olho de seu cavalo): ROXO! Toda vez que desço encontro Danielle com um dos olhos roxos! Como alguém pode levar a sério uma Pomba Gira com a cara deste jeito?! Para mim chega, se Danielle não resolve isto sozinha, eu resolvo por ela, e me dê o cigarro que lhe pedi!
-Calma Dona Maria, calma. Diz a mãe de santo enquanto lhe acende um cigarro. - Eu já conversei bastante com a menina, sugeri até que denunciasse o Layrton na delegacia da mulher, mas você sabe como é, ela tem medo de perde-lo...
- Medo de perder aquele encosto? E de encosto eu entendo! Ela trabalha como uma mula para sustentar o vagabundo e a única porra que ganha é porrada! E olha que Danielle adora levar uns sopapos, sempre gostou, mas na cama, ela goza quando ganha uns tapas bem dados na cara enquanto cavalga uma bela pica. Mas este é o único lugar onde o encostado não lhe bate, aliás não faz nada, só ronca e baba, não deixando a coitada dormir.
A mãe de santo está sem reação. Dona Aracy é de Ogum, mas nem a valentia e poder de comando do santo são suficientes para resolver esta demanda:
-Tudo bem Dona Maria. Se quer ficar, fique. Mas me diga: o que a senhorita pretende fazer?
- Ir para o Tietê.
- Tietê? Fazer o quê? Nadar naquele rio sujo?
- Não Dona Aracy. Vou para a rodoviária do Tietê comprar uma passagem para Taubaté.
- Primeiro a senhorita diz que fica e agora comunica que vai embora para Taubaté incorporada na menina. Isto é seqüestro!
- Não é não. Se há consentimento da vítima não é seqüestro. ( solta uma estridente gargalhada). Como disse, só quero ajudar a menina. Traga-me a bolsa de Danielle por favor.
Dona Aracy busca a bolsa e a entrega para Danielle, quer dizer, para Maria Padilha, que de lá retira um envelope.
- Abra e leia por favor. Diz Maria Padilha entregando o envelope a Dona Aracy. Trata-se de uma carta:
"EDITORA T
Avenida Tiradentes 69. Centro. Taubaté. CEP 08400-000
Taubaté, 2 de fevereiro de 2007
À
Senhorita Danielle Arruda dos Santos,
Informamos que recebemos uma série de contos eróticos de sua autoria pelos quais nos interessamos muito e pretendemos publicar nas próximas edições da revista LESBIANAS.
Gostaríamos também de saber se há interesse de sua parte em colabora regularmente como escritora em outras publicações eróticas desta editora.
Atenciosamente
José Lins Petra
Editor Chefe"

A mãe de santo relê a carta, uma, duas, três vezes e a cada leitura novas rugas de interrogação se formam em seu rosto.
- É isto mesmo Dona Aracy. Danielle é uma excelente escritora, de putarias, é verdade, mas isto não diminui seu mérito. À algum tempo que para consolá-la da brutalidade, do ronco e do pau mole do marido, lhe busco durante as madrugadas e conto algumas singelas passagens da minha vida como cortesã libertina pelas cortes europeias. No começo ela tentava disfarçar o calor que estas aulas de história lhe produziam , mas em pouco tempo perdeu a vergonha (ou recuperou a sem vergonhice que tinha perdido) e passou a se masturbar e gozar escandalosamente, e isto na cama ao lado do imbecil do Layrton que nem assim parava de roncar e babar. Um dia ela resolveu escrever uma de minhas histórias e enquanto lia, era eu que me masturbava e gozava como se estivesse numa orgia de Gamiani. A safada é divina com as palavras e transformou minhas putarias em verdadeira obras de arte. Convence-la a mandar os escritos não foi muito difícil e a resposta da editora, como a senhora pôde verificar, chegou em menos de um mês.
Após estas palavras Maria Padilha silencia e volta a beber calmamente sua champanhe enquanto fuma outro cigarro. Dona Aracy, ainda com a carta na mão, observa muda a bela mulher com seu vestido vermelho. Esta cena dura exatos três minutos. A mãe de santo então se mexe. Caminha até a garrafa de champanhe que se encontrava bem no meio do ponto riscado da entidade, completa a taça de Maria Padilha que lhe agradece com um sorriso faceiro. No próprio gargalo bebe um generoso e longo gole quase secando a garrafa, abraça a mulher pela cintura e pergunta:
- Aceita uma carona, senhorita?

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

FILOSOFANDO NA JANELA

Janela do quarto escancarada. Duas da tarde, céu azul pelado, desanuviado. Apoiados no batente, o casal trepa escandalosamente. Na rua pessoas passam fingindo não vê-los nem escutá-los, disfarçados em suas pesadas roupas de trabalho.
A janela é uma linha ambígua: separa pelados de vestidos excitando-os mutuamente

PITANGAS MADURAS

Pitangas maduras. Cheiro magenta num pote de vidro sobre o criado mudo ao lado da cama.
Pitangas maduras. Todo sentido se toca nos lábios enquanto o gosto desnuda e se cobre de carne, de pelos, suor, secreções e línguas.
Pitangas maduras. Espremidas para extrair suco. Avermelhando bocas, peitos, costas, cochas e bundas.
Pitangas maduras. Escandalosamente maduras.

sábado, 9 de agosto de 2008

ODISSÉIA

Protetor auricular nos ouvidos e uma muralha intransponível se fez. Pelo menos assim crê o Herói. Estufa o peito, olha-se no espelho do banheiro e vê, mais uma vez, Ulisses amarrado ao mastro da embarcação enfrentando as sereias. Caminha até a sala, senta-se no sofá e fica olhando para a porta. Ela chegará em breve, mas, desta vez, não conseguirá enfeitiçá-lo com sua voz. Não enfiará pelos seus ouvidos as ondas sonoras que saem da sua boca e sempre afogam sua racionalidade, deixando ativos no cérebro apenas os neurotransmissores responsáveis pelo funcionamento do seu pau.

“- Uma imigrante grega. Uma sereia do mediterrâneo que aportou nestes lados da América do Sul”. Pensa o Herói. Por que uma sereia escolheu imigrar para São Paulo e não para Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá ou qualquer outro lugar próximo ao mar, ele não sabe explicar, mas que se trata de uma sereia disto está convicto.

A porta se abre, seu coração dispara e concomitantemente seu pau começa a inchar dentro das calças. Respira fundo, levanta e, com as mãos para trás como um soldado, se põe em posição de sentido no meio da sala.

Ela entra linda (como sempre): cabelos pretos curtos, lábios carnudos, um pequeno piercing no nariz, usa um vestido justo com estampa e corte orientais, um deliberado decote deixa suas costas negras abusarem de tudo ao seu redor, carrega uma pequena bolsa vermelha. Miúda, possui o rosto e o corpo dignos de uma ninfa: graciosamente lascivos.

Sorrindo ela observa o sujeito a sua frente, rijo como um obelisco com aqueles dois ridículos pontos amarelos de borracha enfiados nos ouvidos. Passa a língua no lábio inferior até senti-lo úmido, seus olhos negros percorrem o corpo do Herói como se fossem garras a lhe rasgarem as roupas. Não emite uma palavra. Abre a bolsa e retira as únicas coisas que nela carregava: Pitangas. Sete frutinhas bem maduras e vermelhas como sangue. Espreme-as com a mão esquerda, o sumo escorre pelo seu braço e um cheiro doce começa a se espalhar pela sala.

“- PUTA FEITICEIRA!”. Grita o Herói enquanto tampa o nariz. Mas já é tarde. O cheiro das pitangas misturado com o cheiro dela já havia se enfiado pelas narinas embriagando seu cérebro. Adeus Ulisses! No Mediterrâneo as sereias te deixaram passar, mas aqui não. Elas permitiram sua viagem, esta é a verdade, nem cantar cantaram, simplesmente gargalharam enquanto você passava amarrado ao mastro com os ouvidos cheios de cera. Elas riram da sua ingenuidade, da sua inocência incapaz de perceber que o encanto das sereias não estava somente no canto. Adeus Ulisses, no Atlântico abaixo dos trópicos todo heroísmo se carnavaliza e seu mito dançou. Adeus Ulisses e que venha Priápo com sua pica eternamente dura! E se jogue nesta mulher, sereia, ninfa, se arremesse Priápo neste penhasco de carne, misture todos os mitos, deseje o sol, derreta-se na luz e goze sentindo a brisa do vento que arrepiou o corpo de Ícaro durante a queda.


terça-feira, 5 de agosto de 2008

ALIANÇA

Meu dedo indicador da mão direita. Gosto muito dele. Decidido e vanguardista. Todas as vezes que Te toco é ele que chega primeiro até Tua pele
Encosta
Aperta
Desliza
Penetra
Meu dedo indicador da mão direita. Entram pelas suas terminações todas as sensações produzidas durante o contato com o Teu corpo que sobe pelo meu sistema nervoso e é decodificado pelo meu cérebro produzindo sorrisos, aceleração dos batimentos cardíacos, suores, enrijecimento muscular, gritos, gemidos, sussurros, gozos animalescamente humanos.
Meu dedo indicador da mão direita. É onde tenho e me amarro a Você num circulo de ouro branco que brilha no corpo do meu dedo indicador da mão direita.

VADIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA

O mesmo desenho. todos os dias linhas e cores se esparramando pelas folhas e, no final, sempre a mesma forma. Aqui a fase atual do artista: toda angustia, todo desejo, toda vontade e sentido contidos em seu trabalho.
Em outro momento o artista acreditava que o fundamental era conquistar novas formas. O belo estava no ato da conquista e se bastava na conquista. Mas acabou este momento. Não o nega, não o enaltece saudosamente, nem o encara como parte de uma espiral cronológica capaz de explicar o caminho de sua arte. Guarda deste momento o bom e o ruim da experiência vivida e os deixa correndo livremente pela cabeça, mas longe dos pés para não congelar o presente.
E o presente é este mesmo desenho diariamente executado, e o belo se faz em varias ações sobre este mesmo tema: clarear, escurecer, inverter, reorganizar, alongar, diminuir, remontar... tudo é válido para gozar o belo e o belo se faz no mesmo. No mesmo desenho desenhado, no mesmo desenho nascendo, no mesmo desenho que se anima, ganha vida e não morre (não se repete), no mesmo desenho sendo um novo desenho, no mesmo desenho agora, todos os dias.

O VIDRO

A janela é de vidro. Através dela vejo árvores. Trabalho em um parque. Mas o importante é ver o vidro que me separa das árvores. Se saio correndo da mesa de escritório onde estou em direção a goiabeira que começa a florir vou bater no vidro e posso me machucar, ou pior, danificar o vidro. O prédio foi projetado por um importante arquiteto, nada nele pode ser alterado, ele faz parte de um complexo de construções arquitetônicas dedicadas às artes e a cultura dentro de um parque projetado por um importante paisagista. Por isto o vidro é muito importante, melhor esquecer este meu plano de sair correndo em direção a goiabeira que começa a florir.Escuto um barulho: um pássaro que voava pelo parque e que não sabe nada de arquitetura, paisagismo e muito menos de vidros se choca contra este patrimônio transparente e cai no chão. Vou andando até a janela e vejo através do vidro o pássaro caído próximo à goiabeira. Alguns gatos surgem, pegam o pássaro desmaiado no chão e o devoram, depois se deitam na sombra da goiabeira e ficam olhando para o vidro. Felinos espertos: moram perto do vidro que segundo a sua versão da história foi projetado para facilitar a obtenção de comida e liberar sua espécie da difícil e muitas vezes infrutífera arte da caça. Volto para minha mesa, olho para o relógio: 15 minutos para terminar o expediente. Finjo trabalhar organizando coisas que já estão organizadas e que não tem importância nenhuma para mim. Tento fazer os minutos passarem rápido, não quero mais ficar onde estou.

O ARMÁRIO

Uma amiga me fala sobre a faxina:
- "É necessário esvaziar os armários e jogar coisas fora de vez enquando."
Ela tem razão. Abro o armário e vejo que não há mais nada dentro, tudo o que havia resolveu ir embora por conta própria (afinal, tudo vai embora, uma hora ou outra) e só restou o próprio armário com sua madeira vagabunda, sua pintura gasta e sua imobilidade....

( )

(acordar com a boca seca às 3 da manhã, nenhuma novidade. Levantar, ir ao banheiro mijar as cervejas e doses de conhaque que lhe serviram de janta, nenhuma novidade. Caminhar no escuro até a cozinha, beber um copo d´água e ficar feliz com a sensação da água descendo pela goela, nenhuma novidade. Olhar para a geladeira e ver o telefone ao lado do pinguim de gesso que a enfeita, nenhuma novidade. Pegar o telefone que ainda dá linha, mesmo sem ninguém do outro lado, desligá-lo, levá-lo para a sala e, por fim, voltar a se deitar. Aqui o parênteses de todas as madrugadas se fecha, mais uma vez, sem nenhuma novidade).

FÉNIX

Sou a faca que passa pelo coração do pássaro: atravesso, corto e lhe sangro o corpo. Sou a lâmina suja que embebida de sangue combustível queima e se derrete, incinerando o pássaro, reduzindo aço e carne a cinzas.Sou as cinzas da Fénix.Sou o resto, a esperança. Agora é crer não só que a Fénix renasce: Mas que se fortalece.

SUBTROPICADO

...em direção ao sul a boca desce o corpo
mergulhando e se perdendo na humidade e no calor do trópico de Vênus.

TRANSITO

Olho para a cidade pela janela do ônibus. Sete da manhã, dia nublado, asfalto molhado (choveu a noite inteira), acho que hoje não vai ter luz, mais um daqueles dias em que o cinza paulista gruda no relógio e torna todas as horas equivalentes: sete da manhã, dez da manhã ou três da tarde, tanto faz, o cinza é o único tempo.

Reparo numa moça na calçada, cabelos pretos, roupa preta, me parece bonita. Ela espera passar um ônibus que a levará a algum lugar num sentido oposto ao meu. A moça não me vê. Mas talvez agora eu passe a vê-la todos os dias pela janela do ônibus e ela se torne mais um elemento da paisagem cotidiana do meu trajeto ao trabalho. Alguns dias ela estará mais colorida, mas sensual e outros a acharei feia. Mas sempre estará lá, olhando para a rua e lendo os letreiros com os itinerários dos ônibus que passam. Ela estará lá todos os dias e dela apenas saberei uma coisa: que espera, lê itinerários e espera.

Posso também mudar meu itinerário e nunca mais vê-la, na verdade agora nem me recordo direito do seu rosto, ou de repente ela nem aguarda nenhum ônibus, ou só estava lá fazendo algo completamente diferente da sua rotina. O que tenho de concreto neste momento é que olho pela janela do ônibus e escrevo preso no trânsito desta cidade e espero não chegar muito tarde onde tenho que ir.

Mas ela sem querer, ou saber, se transformou aqui no meu tema e não sei se é porque o trânsito parece diminuir, mas me vejo pela primeira vez sorrindo nesta manhã.

ASILO-ME


Cada dia mais distante. Mas ainda insisto. Continuo mandando sinais, teimando em não aceitar que converso sozinho, que nenhuma resposta virá, porque simplesmente não existo mais. Agora sou o velho, desbotado, frágil, cheirando a mofo e incapaz de despertar qualquer desejo. Sou o velho e me comporto como tal, tristemente resmungando as lembranças do que passou e que cada dia ficam mais distantes, sou o velho esperando aquela visita prometida e que nunca virá, aguardando ao lado de um telefone que nunca toca, em um asilo abandonado habitado só por mim.

Detesto a velhice, ela destrói meu corpo e o torna repugnante e feio, para alguns talvez ela desperte piedade, ou cause a impressão de que no meio da pele enrugada e incapaz de despertar desejo alguma sabedoria se acumulou, grande merda, a velhice não acrescenta nada, só fragilidade e uma saudade brocha chorosa e insuportável.

Invejo o novo, que fascina e é cheio de libido, que não precisa se esforçar muito para ser visitado - chegasse a ele naturalmente - não espera telefonemas e tem uma pele que quer ser tocada e penetrada e exala cheiros que humedecem e esquentam. O novo que encosta e causa arrepios e gozos, o novo que recebe a boca que procura seus beijos e que lhe diz as mesmas declarações e juras de sempre (mas que se tornam únicas e singulares pela boca que as diz).

Este é todo o ciúme do velho, todo rancor por sua incapacidade perante a potência viril do novo. Este é todo desespero do velho, que tenta não aceitar a morte, a anulação, o que não pode ser alterado. E assim segue sua existência de velho teimoso que fede morto e não sabe. Conversando com o nada.

PRIMEIRA INSTRUÇÃO: INCOMPORAÇÃO

Pegue o texto de um autor que você admira. Leia-o não como leitor, mas como autor. Lembre-se: para quem escreve o escrito é sempre um esboço a lápis. Faça correções ortográficas e de conteúdo. Acrescente e altere palavras e frases. Mude o sentido do texto quantas vezes achar necessário.

Sirva-o acompanhado do original, ou não, se preferir.

SEGUNDA INSTRUÇÃO: ERUDIÇÃO

Caminhe pelas ruas de uma grande cidade entrando em todas as livrarias que encontrar. Durante esta etapa do processo preste muita atenção no tamanho das lojas. Após mapear o maior número possível de estabelecimentos dirija-se ao que, segundo seus critérios, considere o de área mais extensa. Leve consigo pedaços de papel, lápis e um saco. Os pedaços de papel devem ser em número suficiente para que você possa escrever os assuntos pelos quais os livros estão organizados e divididos pelas prateleiras: literatura brasileira, literatura estrangeira, humanas, exatas, direito, etc. UM ASSUNTO POR PAPEL.

Após todos os assuntos devidamente registrados, dobre os papeis e coloque-os dentro do saco. Enfie uma das mãos no saco e retire um dos papeis. Desdobre, leia, guarde no bolso da calça e vá até a prateleira correspondente ao assunto sorteado. Provavelmente os livros estarão organizados por ordem alfabética e sobrenome de autor. Pegue o primeiro – primeira fila, letra A – e leia o título, a contracapa e as orelhas. Recoloque-o na prateleira. Repita o procedimento com o próximo livro da ordem e com todos os demais, sucessivamente, até o último – última fileira, letra Z.

Concluído este assunto, enfie novamente a mão no saco e retire outro papel, desdobre, leia, guarde no bolso da calça e dedique-se ao novo tema, aplicando o mesmo método de leitura do assunto anterior. Continue o procedimento até transferir todos os papeis do saco para o bolso da calça e os títulos, contracapas e orelhas de todos os livros da loja tenham sido devidamente lidos.

Saia da livraria e volte para a rua. Dirija-se ao bar mais próximo. Peça uma bebida e converse com qualquer um que encontrar por lá.

TERCEIRA INSTRUÇÃO: EQUILÍBRIO

Durante sete dias anote seus gastos diários essenciais numa caderneta. É fundamental calcular o número exato de suas despesas básicas cotidianas: alimentação, locomoção e habitação[1].

Após obter o número exato, escreva o valor num papel, guarde-o na carteira e aguarde o recebimento de seu próximo pagamento.

Pegue todo o dinheiro e leve-o para casa. Não deposite nem um centavo em conta bancária. Durante os próximos quinze dias gaste diariamente APENAS e EXATAMENTE o número anotado em sua carteira. É necessário muita disciplina e empenho, pois é igualmente proibido gastar a mais ou a menos nesta etapa.

Na noite do décimo quinto dia conte quanto dinheiro ainda lhe resta em casa. Coloque todo o valor dentro da carteira. Espere o relógio marcar meia noite e um e saia para a rua.

Gaste todo dinheiro antes que o dia amanheça.

[1] Caso pague aluguel, divida o valor pela quantidade de dias do mês e considere este valor como seu gasto diário, caso possua casa própria calcule o gasto diário dividindo pelo número de dias do ano o valor total do imposto imobiliário anual, não se esqueça de incluir na categoria habitação seus gastos com água e luz.

QUARTA INSTRUÇÃO: FÉRIAS

Escolha uma direção: Norte, sul, leste ou oeste. Verifique num mapa qual cidade encontra-se a mil quilômetros da sua casa neste sentido.

Viaje a pé até o lugar. Não leve nada além da roupa do corpo, uma carteira com dinheiro e o cartão do banco.

Não tome banho durante o trajeto e durma pela estrada. Só gaste dinheiro comendo e bebendo.

Chegando a cidade de destino, procure encontrar o mais rápido possível a rodoviária local e volte para casa.

QUINTA INSTRUÇÃO: ILUMINAÇÃO

Observe as estrelas à noite. Faça isto durante o tempo necessário até uma das estrelas começar a chamar muito a sua atenção. Volte para casa e durma.

No dia seguinte, de banho tomado e vestido com sua melhor roupa comece a observar o céu antes do fim do dia. Aguarde a estrela aparecer. Contemple-a, exclusivamente, até o amanhecer.

Sem dormir, passe o terceiro dia escrevendo poemas e comprando presentes para a estrela, dedique todo seu tempo a esta atividade. Espere o anoitecer completamente nu e tenha ao seu lado os poemas dedicados e presentes comprados. Cante, dance, recite os versos, ofereça os presentes.

Continue durante as próximas noites até que depois de tanta dedicação finalmente você atinja a verdade: a estrela é inatingível e encontra-se num lugar onde não pode te ver, escutar, sentir ou ao menos tomar consciência de sua terrena existência.

Volte para casa. Tente dormir. Evite olhar para o céu nos próximos dias, dedique-se a esquecer o que ocorreu (o tempo necessário pode variar de pessoa para pessoa).

Depois, sem notar, você estará, novamente, olhando fascinado para as estrelas do céu.